quarta-feira, 26 de março de 2008

tesouros

líria porto

seu cachorro fiel
seus homens infiéis
seu hímen complacente

*

sexta-feira, 21 de março de 2008

sem rumo

líria porto

lá no lugar onde vive
os seres entram em conflito
por qualquer coisa-me-dá

deixou de ler os jornais
não vê o noticiário
em busca de alguma paz

parece bicho-do-mato
acuado sem saída
em meio às balas perdidas

o corpo barco à deriva
enquanto a morte não chega
fica assim - ao deus-dará

*

carne de pescoço

líria porto

megera era bela nariz empinado
o rei na barriga

quisera vê-la velha a levar no dorso
fardos de remorso

como peso morto

*

quinta-feira, 20 de março de 2008

madalena

líria porto

tal e qual mulher da vida
das que trocam os seus corpos por vinténs
auscultou as almas loucas desvalidas
fez-se roupa maltrapilha de ninguéns
mitigou a fome a sede dos mendigos
afogou-se em tristeza sofrimento
muitos bêbados vomitaram em seu colo
foi abrigo de leprosos de bandidos
copulou com viciados assassinos
mas não pode nem consegue
ser feliz

*

terça-feira, 18 de março de 2008

partida

líria porto

meia-noite
meia-lua
meia-idade
meia calça
meia taça
meia boca
meia sola
meia hora
meia entrada
:
metades
de noz

*

completude

líria porto

vulcões em erupção
a lava incandescente
as chamas as encostas
as grutas

depois o sono
o amor saciado
as águas serenas

a quietude

*

perdição

líria porto

se eu for a tua amiga
vou te dar mais do que beijo
vou te entregar a montanha
de minas terás o queijo
vou te segurar a mão
engomar tua camisa
refrescar a tua água
fazer o teu doce diet
vou te dar meu travesseiro
o meu colchão a coberta
deixar contigo meu lenço
cantar para a tua festa

mas se eu for a namorada
vais ter tanto prejuízo
perderás o teu juízo
no teu colo eu vou sentar
vou querer da tua boca
beijos beijos e mais beijos
vou deitar na tua cama
roubar o teu coração
vasculhar tuas gavetas
usar teu pente o perfume
provocar o teu ciúme
deixar-te desesperado

*

contradições

líria porto

não há correntes que me prendam
muros que me cerquem
homens que me oprimam
não tenho fronteiras –– sou liberta

no entanto
enraízo-me na montanha que me soterra
um rio me inunda deixa-me submersa
e da poesia sou escrava
prisioneira

*

terça-feira, 11 de março de 2008

viciados

líria porto

os mesmos passos caminhos gestos atitudes
e permanecem o sarro o borrão o tremor
de sempre

e ficamos cegos
e continuamos escravos

*

segunda-feira, 10 de março de 2008

livre-arbítrio

líria porto

não pedi tua partida
não pedirei teu regresso

cada qual sabe de si
todos seus erros e esses

*

quinta-feira, 6 de março de 2008

cinzento

líria porto

o amor é morto
o céu poluído

perdeu-se o tom
do azul

*

identificação

líria porto

entre amigos não há constrangimentos
sempre se retoma o momento anterior
é uma alegria receber e enviar notícias
e nada se iguala ao prazer à felicidade
do reencontro

*

coragem

líria porto

deixar o sol para trás
atravessar o portal
e enfrentar a treva

*

tiro de letra

líria porto

não quer não quer
se vier será bem-vindo
se faltar tem o direito
não nasceu grudado em mim

corpo caminha
sem lamento sem rancor
coração é porta-joias
bugiganga é noutro pouso

(a vida sem trambolho)

*

quarta-feira, 5 de março de 2008

é simples

líria porto

batatinha quando nasce
espalha ramas no chão
meu amor não vás embora
estou cheio de vazio

não me peças um soneto
não sei pintar aquarelas
a minha alma devaneia
andarilha pela terra

as palavras me embaraçam
eu tropeço aos pés da letra
quisera escrever bonito
dar-te o verso mais perfeito

fica

*

compreensão

líria porto

passa o tempo
passa a idade
nosso corpo se acomoda
o espírito no entanto
aprimora-se cria luz
rompe as barras da matéria
entende a miséria
dos homens

*

à moda antiga

líria porto

se eu pudesse ah se eu pudesse
como aquela ave ter um par de asas
ia para as grimpas do ipê amarelo
e jogava as flores
                       sobre o teu telhado

se eu soubesse ah se eu soubesse
cantar tão bonito quanto o sabiá
afiava o bico na tua janela
gorjeava alto
                       para te encantar

se tu quisesses ah se tu quisesses
eu faria um ninho bem no teu jardim
rezava uma prece para o azul celeste
que felicidade
                       viver junto a ti

*

sórdidos

líria porto

como se fora um escarro um cuspe
arrastaram o corpo do pequeno anjo
deixaram rastros de sangue e martírio
na alma de pedra da metrópole

diante da barbárie da maldade explícita
diz-me eu te peço o que fazer agora
a terra tão bonita rica maravilhas
é palco de torturas

homens-feras rosnam

*

sem cabimento

líria porto

sussurra varre esbarra corre
empurra derrama derruba
urra
:
o vento

*

um e um

líria porto

apesar das rusgas
rugas peso e pesares
somos parceiros

*

passarinho

líria porto

no azul a liberdade
de voar como se queira
mudar de forma lugar
recortar bordas e beiras
trovejar soltar faísca
permitir-se o arco-íris
o sol as nuvens as pipas
os aviões pára-quedas
asas-deltas devaneios
mergulhos sonhos
delícias

(minhas penas são gaiolas)

*

desbandeirada

líria porto

não quero nada
nem ir para pasárgada

passei da idade
de seguir viagem

aqui – sozinha
sou rainha

*

humanização

líria porto

aquecer as pedras
colocá-las ao sol

abraçar os velhos
são eles o sol

quarar nossos versos
deixá-los ao sol

enluarar

*

faróis

líria porto

não deixem que a luz se apague
acendam velas e velas
permitam que elas propaguem
o fogo que agora é delas

de lá de onde estiverem
perceberão o clarão
daqueles homens mulheres
que levam tochas nas mãos

*

pesquisa_dor

líria porto

pássaro no meio do mato
assim esse homem no seu habitat

deseja abarcar desvendar
entender tudo

sons letras palavras
metáforas significados

*

grafite

líria porto

letras palavras versos
podem causar o avesso
daquilo que pretendíamos

(risco)

é preciso estar atento
treinar bastante a contento
conferir fim e começo

(rabisco)

acaso não dominemos
as rachaduras as frinchas
cobri-las com tinta fresca

(borrão)

*

segunda-feira, 3 de março de 2008

retrato de família

líria porto

a mulher vestida de preto
com bordados de strass
o marido de terno azul claro
e sol na lapela
são pais das crianças mestiças
aurora e crepúsculo

*

impassível

líria porto

viu-me grávida
com filhos ao colo
gorda
magra
nua
vestida
descalça
de saltos
chinelos
sandálias
triste
alegre
doente
saudável
apressada
(in)feliz
risonha
chorosa
exausta
grisalha

o que espera
um corredor 
ver-nos
mortos?

*

sabedoria

líria porto

toda palavra
precisa ser lapidada
esmerilada polida
lavada com muita água
pra depois ser engolida

*

vicioso

líria porto

acordava triste sem motivo
ou sem motivo acordava
e ficava triste

*

autômato

líria porto

sem calor nem frio
sem amar ou odiar ninguém
sem se importar com nada
ou procurar saída
está morto

vivo

*

a idade encolhe o son(h)o

líria porto

um azul cheio de noite
o cheiro bom da aurora

começam a encantar os galos
a despertar os cachorros

assanhar os passarinhos
ouve-se algum motor

postes apagam-se aos poucos
eu dou um pulo
da cama

*

benfeitor

líria porto

igual água estagnada
imprópria para consumo
estava a lua sem alma
sem alegria e sem lume

um vento soprou a nuvem
vestiu-a com roupa rendada
linda guirlanda de flores
espalhou sua claridade
pelos campos
e colinas

*

horizontes

líria porto

a roupa no cabide
espera um corpo
um convite

a roupa na mala
tem outra expectativa
:
seguir viagem

a roupa no cesto está dentro
ou fora do contexto?

*

roda

líria porto

tais como passos de dança
vem um verso outro e outro
e quando nos damos conta
eis a ciranda

*

revoada

líria porto

do topo ao sopé
e de novo
ao topo

quem tem asa
não precisa
de escada

*

dedicatória

nus descampados (im)puros
fiamos o plenilúnio

(líria porto)



*















quem tem pena de passarinho
é passarinho

(líria porto)

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